quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Versão brasileira: Herbert Richers

Primeiramente, gostaria de dizer que eu não sou um doido varrido ou um extremista dos infernos :)... As opiniões e ideias contidas aqui foram formadas ao longo de vários anos de observação e reflexão, e todas têm seus fundamentos e razões de ser. É claro que você tem todo o direito de discordar delas. Fique à vontade para comentar!

Segundamente, para passar a ideia completa e de uma forma plenamente compreensível, eu precisaria de vários dias ajustando esse texto, e não estou com muito tempo/saco para tanto :). Não sei se eu fui muito claro em alguns pontos. Por isso, qualquer dúvida, é só perguntar!

Vamos lá:

Eu simplesmente não entendo essa mania que muitos brasileiros têm de colocar palavras em inglês no meio das frases. É "off" daqui, é "vegan" dali, é "soft" de lá, é "clean" dali...

O mais engraçado é quando você tenta explicar que "clean" é o mesmo que "limpo". Aí a pessoa diz "Não não... Clean é clean! Limpo é outra coisa". É bem engraçado e triste ao mesmo tempo. É incrível como as pessoas têm a capacidade de pegar uma palavra X em inglês que significa exatamente Y em português e atribuir a ela um significado Z... Como elas conseguem? Tem que realmente ter uma grande imaginação!

Na verdade, eu sei muito bem porque isso acontece. Vamos do começo:

As palavras têm significados e também têm conotações. A gente cria um certo sentimento com relação às palavras que a gente usa, o nosso cérebro se acostuma com elas. A gente usa-as para indexar o nosso cérebro, acelerando a localização dos significados.

Um dia, nós, brasileiros, ouvimos algum estrangeiro dizendo a palavra clean para se referir a alguma coisa simples, direta, sem frescuras. Então, alguém do Brasil teve a seguinte sacada: "Ahhhhhhh, legal! Quer dizer então que clean é ISSO!!! Ótimo, vou começar a usar essa palavra!".

O que esse cidadão acabou de fazer foi associar um signo a um significado. O cérebro deste cidadão mapeou a palavra clean para o significado abstrato da palavra, que é independente de língua.

Aí alguém, um belo dia, percebe o óbvio: clean é limpo (tá no dicionário, e também no cérebro dos falantes das duas línguas). Limpo em português é clean em inglês, ponto. Alguma coisa pode muito bem ser chamada de limpa caso ela seja simples, direta, sem frescuras. O caminho de limpo para "simples, direto, sem frescuras" é exatamente o mesmo do inglês partindo da palavra clean, funciona aqui tanto quanto funciona lá fora. Só que, aqui, as pessoas não falam "This building has a clean architecture". Aqui, as pessoas não falam this, building, has, architecture. Elas falam, ou poderiam falar, "Esse prédio tem uma arquitetura bem limpa". Então, por que nego acha tão legal acrescentar o desnecessário clean na frase?

Simples, porque nego acha interessante o conceito de clean. E é interessante mesmo! O que o cidadão não percebe é que esse conceito não é exclusividade de quem fala inglês: esse conceito é universal. Esse conceito sempre existiu, e as pessoas sempre disseram ou puderam dizer a palavra limpo para se referir a ele. O clean não acrescentou nada na vida da gente. Mas a pessoa não sabe disso, ela acha que clean é a revolução do universo.

Vamos a um outro exemplo.

Vegan: palavra surgida na década de 1940, quando Donald Watson fundou The Vegan Society, no Reino Unido. Ótimo!! Perfeito, maravilhoso! Ele fundou essa sociedade no Reino Unido, onde curiosamente as pessoas falam inglês. A origem da palavra é simplesmente uma redução de vegetarian, pegando o começo e o fim da palavra (talvez uma analogia com o fato de veganos sejam, de uma forma bem simplificada, vegetarianos que comem algumas coisas a menos - então a palavra diminui, sacou?).

Um dia, o veganismo atravessou as fronteiras oceânicas e chegou num país chamado Brasil, onde as pessoas falam português. E algumas pessoas daqui começaram a falar vegan, igual no inglês. Outras pessoas perceberam que, se existe a palavra vegetariano, pode passar a existir a palavra vegano também. Simples assim. Aí, essas pessoas começaram a dizer vegano, vegana, veganismo, veganizar, veg o que você quiser. E funcionou muito bem assim desde então.

Enquanto isso, outras pessoas decidiram que diriam somente vegan. Essas mesmas pessoas não dizem veganism. Por quê? Talvez porque veganism seja uma palavra meio difícil e chata de se pronunciar. O que muita gente não sabe é que a pronúncia de vegan não é "vígan", é algo meio que "veígan", difícil de escrever a pronúncia, difícil de pronunciar, difícil de as pessoas entenderem quando você diz. Tudo isso é óbvio, afinal, é uma palavra estrangeira!! É óbvio que não temos prática em pronunciá-la, e não precisamos ter, pois existem palavras em português que funcionam perfeitamente bem nesse contexto. Mas, mesmo assim, parece que tem gente que acha mais chique, ou mais "original", ou mais sei lá o quê falar "vígan", "vígan", "vígan". A "vígan" de sustentação do prédio, por exemplo.

"Ah, mas 'vegano' é meio estranho!". "Ah, mas 'limpo' é feio!", "Ah, mas '50% de desconto' é tosco, muito melhor, mais curto e mais chique falar 50% OFF!". Muita gente pensa assim. Essas pessoas esquecem-se do fato de que toda palavra nasceu algum dia, nenhuma palavra "sempre existiu". Toda palavra causou estranhamentos no começo da sua existência, afinal, ela era NOVA!!! Tudo o que é novo causa estranhamentos. Os estrangeiros, quando ouviram vegan pela primeira vez, estranharam também. Com o tempo, eles se acostumaram. Percebo que nós aqui temos preguiça de passar por essa adaptação. Queremos puxar coisas prontas de fora, queremos evitar ao máximo qualquer desconforto ou estranhamento. Temos mania de achar que as palavras em inglês são mais "bonitas" e que as versões dela em português são "feias", só porque a gente não entende direito quando está dita em inglês e entende muito bem quando está dita em português. E então, já que a gente não entende, "deve estar bem assim", mas, quando a gente entende, acha "feio". É igual letra de música: muita gente acha melhor ouvir letra em inglês porque não entende o significado, porque, se for ver o significado mesmo, vai achar a letra ridícula. (OBS: não estou achando que a pessoa iria achar a letra ridícula; já ouvi gente realmente dizendo que ACHA a letra ridícula quando a entende!)

Deixa eu ver se eu saquei bem a ideia: é bonito não entender o que está sendo dito e é feio entender exatamente o que está sendo dito?

Loop significa laço, em inglês. Um loop na programação nada mais é do que um laço. Hein?? Sim! Já viu a forma de um laço? É uma linha curva, que começa em um ponto e termina nele mesmo, ou seja, é cíclico, volta para o início depois de terminar.

E aí? É bonito dizer loop e é feio dizer laço? Com certeza menos gente já ouviu laço com esse sentido e alguns vão achar estranho, mas será que a primeira vez em que loop foi dita lá fora as pessoas acharam 100% normal? Ou acharam meio estranho também? E será que não foi interessante perceber essa analogia do significado original da palavra com o significado que ela tem nesse contexto? Será que essa analogia não ajuda no entendimento?

É feio sacar na hora a analogia que se está usando para criar aquele novo conceito e é mais bonito usar uma palavra desconhecida, cuja analogia não será percebida? É feio dizer vazão de dados e é bonito dizer throughput? Algum brasileiro acha fácil escrever e pronunciar throughput?

Muitas vezes escrevemos mais ou menos assim:

O throughput do sistema (a "vazão" de dados) ...

É preciso mesmo ficar colocando entre aspas a palavra que representa exatamente o que o conceito é? É preciso ficar dizendo "Uma arquitetura clean é como se fosse, assim, 'limpa', sabe, não tem muitos elementos, é simples"? É preciso mesmo dizer esse "é como se fosse" para uma coisa que realmente É EXATAMENTE aquilo?


Eu sinto aí uma inversão de valores. Sinto que estamos querendo tomar atalhos que não deveríamos. Ficamos querendo evitar pequenos desconfortos com as palavras, e acabamos criando desconfortos maiores. A grande maioria da população brasileira não sabe inglês, ao contrário do que muitos de nós achamos. Ao usar termos em inglês, dificultamos o entendimento da informação. Pior ainda, fazemos essas pessoas se sentirem mal porque não entendem o que estamos dizendo. Também fazemos elas se acharem burras, porque não entendem o que estamos dizendo mas sentem que deveriam, quando na verdade nós é que deveríamos ter explicado a coisa de forma mais clara e acessível.

Não estou dizendo que não devemos estudar inglês, muito pelo contrário, devemos estudá-lo, e muito, a vida inteira. Mas não para piorarmos o português, e sim para melhorarmos nossa comunicação com pessoas de fora e sermos capazes de entender material vindo de fora (seja para estudo ou diversão).

"Ah, mas português é difícil!". Inglês também é muito difícil, apenas de maneiras diferentes. A questão é: alguém, lá fora, já teve todo o trabalho de descobrir ou inventar palavras para serem usadas em determinado contexto para significar determinados conceitos. Se a gente simplesmente importar essas palavras, é claro que fica mais fácil! Alguém já fez o trabalho sujo. E, ao se sujar, essa pessoa aprendeu um monte de coisas: conheceu palavras novas, conheceu significados novos, descobriu novos conceitos, e acabou aprimorando a ideia que ela gostaria de passar. Ao simplesmente pegar essas palavras prontas, você acabou de 1) dificultar o entendimento para o seu interlocutor; 2) perder um monte de analogias que fundamentavam as escolhas daquelas palavras; 3) reduzir o seu próprio entendimento do assunto em relação ao que você teria de entendimento se tivesse feito esse trabalho de buscar as palavras correspondentes (ou inventá-las) na sua própria língua.

Em outras palavras, você simplesmente aproveitou muito pouco do entendimento que poderia ter tido do assunto.

Pensando em nós como um país inteiro de pessoas fazendo isso sistematicamente, como ficamos? Ficamos daquele velho e tosco jeito: uma nação que tem o costume de apenas consumir coisas prontas, imitar os outros, repetir fórmulas, não aprender as coisas direito, não inovar.

Se a gente apenas decorar as palavras do livro-texto em inglês que a gente estudou e repetir essas palavras por aí, estaremos tentando replicar um conhecimento que foi produzido em uma outra cultura. Simplesmente não funciona direito.

Nós NÃO temos a mesma cultura dos Estados Unidos da América. Nós NUNCA seremos os Estados Unidos. E isso é ÓTIMO! Porque nenhum país tem que ser igual aos outros. Nenhum país É igual aos outros. Isso é que dá graça ao mundo. Cada país fala uma língua, e isso é ÓTIMO, ao contrário do que muita gente acha. Para nós, certas coisas fazem sentido que para eles não fazem (algumas piadas, por exemplo). O inverso também é verdadeiro: um monte de ditos populares, piadas, frases conhecidas etc. que eles têm lá NÃO FAZEM O MENOR SENTIDO para a gente, nem deveriam fazer. E as palavras que eles inventam lá fazem sentido para ELES, têm fundamento para eles, têm analogias boas pra eles. Nós aqui merecemos palavras mais próximas da gente, adaptadas para a NOSSA cultura.

Traduzir um livro, um filme ou qualquer texto não é um trabalho qualquer. O tradutor, já disse o Sr. Eduardo Spohr (do Nerdcast), é um ESCRITOR. Um tradutor ESCREVE um livro. Ele não apenas traduz as palavras, nem apenas as ideias. Ele captura a ESSÊNCIA do texto e reescreve-o, adapta-o para uma outra língua, uma outra cultura. Fizeram isso na dublagem do Chaves e Chapolin. Ficou bom, não?

Fizeram isso muitas outras vezes, e em algumas vezes ficou bom, em outras não ficou - assim como tudo na vida, que tem horas em que dá certo, tem horas em que não. Com esforço e dedicação, pode ficar muito bom. Não pense que está escrito na pedra que "traduzir = ficar tosco", "inglês é melhor que português", "português é muito difícil", "escrever é chato" etc. Cuidado com verdades absolutas. Elas podem te enganar, fazendo-se parecer que são suas, e na verdade terem vindo de algum outro lugar não confiável. Forme sua própria opinião. Pense na ideia, reflita sobre o tema, observe atentamente como funciona a comunicação entre as pessoas.


Eu NÃO estou dizendo para largarmos mão total de usar palavras em inglês, nem que devemos traduzir tudo. O que eu quero mesmo é mostrar um outro lado da questão muito pouco comentado. Quero mostrar que o "não traduzir nada, NUNCA" pode ser tão prejudicial quanto o "traduzir tudo, SEMPRE". Quero mostrar que a maioria de nós tem, em geral, uma visão meio enviesada, tendenciosa da coisa, pois poucas pessoas realmente param pra pensar de verdade no assunto. O que mais se vê são opiniões prontas sendo repetidas pra todo lado, e eu acho isso muito perigoso. A maioria das pessoas acha que tem mais é que não se preocupar nem um pouco com isso, tem que falar como quiser, fazer como quiser e pronto. E eu vejo essa visão como sendo tão problemática e extremista quanto "traduz tudo sempre, é proibido falar em inglês, isso tudo é uma vergonha nacional". E lembro também que o lance da tradução é apenas um dos muitos pontos da questão, possivelmente o mais polêmico. O assunto vai muito além, passando por áreas como Línguas, Línguística, Psicologia Cognitiva, Filosofia da Ciência etc.


Como leitura extra, recomendo (principalmente aos computeiros) o texto Tradução de Textos de Computação e Informática para o Português. É de um professor da USP chamado Fábio Kon. Ele discute brevemente a questão e sugere algumas traduções interessantes. Eu discordo de algumas ideias dele (por exemplo a questão da palavra site), mas achei algumas coisas muito da hora, por exemplo a ideia do complexo de inferioridade e a tradução correta para a palavra assume (supor, considerar - acrescento ainda: presumir -, e não assumir, que tem outro significado. A palavra assume é um falso cognato).