domingo, 17 de agosto de 2014

Lição de casa

Se você quer ser um bom programador/desenvolvedor, tem que fazer a lição de casa.
Se você quer ser um bom músico, tem que fazer a lição de casa.
Se você quer ter uma boa saúde, tem que fazer a lição de casa.

O que significa fazer a lição de casa? Sempre escutei essa frase e fiquei pensando o que ela significaria exatamente.

Lembra quando você era mais jovem e sempre tinha lição de casa para fazer? Lembra como era a sensação? Lembra quanto trabalho dava? Lembra quanto você tinha que se esforçar e ter disciplina para conseguir terminar as lições de casa?

Isso tudo é a parte chata. Ela é bem tangível, é fácil de perceber e dá até para medir em horas. E a parte boa, você consegue perceber, lembrar, medir?

Geralmente, essa parte boa é mais intangível. Lições de casa servem para treinar você para te deixar mais apto a realizar alguma atividade, como programar ou tocar música. Não é muito fácil perceber a relação entre a atividade ficar mais fácil e ter feito a lição de casa. É porque esse processo costuma ser bem gradual. Demora. É indireto.

Uma coisa engraçada e comum é a gente achar que começou a conseguir fazer alguma coisa magicamente, sem se lembrar de quanta lição de casa teve que fazer para chegar lá. Psicólogos devem ouvir isso direto do paciente: "Nossa, agora estou conseguindo tal coisa que antes eu não conseguia! Nem sei o que aconteceu!". Mas o psicólogo sabe muito bem o que aconteceu: meses de trabalho e de dedicação do psicoterapeuta e do paciente! Acontece com fonoaudiólogos, também. Acontece com musicoterapeutas, também.

Eu já plantei algumas árvores, mas nunca cuidei de uma até vê-la crescer (um dia ainda vou fazer isso). Mas tenho percebido que a natureza, especialmente o reino vegetal, nos tem muito a ensinar. Todo mundo sabe que uma árvore não cresce da noite para o dia. Todo mundo sabe que ela leva muito tempo para crescer. O que nem todo mundo sabe é que:
  • nem toda semente germina
  • nem toda semente germinada vira uma plantinha
  • nem toda plantinha sobrevive
  • nem toda sobrevivente se desenvolve
  • nem toda terra já está fértil o suficiente
  • nem toda adubação dá certo
  • nem toda árvore frutifica
  • nem todo fruto é doce
  • nem todo fruto ficará para você (os bichos também terão interesse nele)
  • nem toda solução para os bichos é saudável (agrotóxico aí, alguém?)
  • nem todo mundo fica tempo o suficiente no mesmo lugar para colher os frutos

Ou seja: tem um monte de coisas que podem dar errado no meio do processo. Quem trabalha na roça sabe, e um dia ainda vou trocar uma ideia com essas pessoas, pois sinto que elas tem um nível de conhecimento tácito da vida que a gente da cidade nem imagina. Sinto que essas pessoas sabem aceitar a vida de uma maneira que a gente nem sonha.

Bom, e como se faz para se chegar ao fruto doce da árvore? Imagine que você, que eu acredito que não entenda muito de agricultura, invente de plantar uma macieira para um dia colher doces maçãs. O que você teria que fazer?

A primeira coisa que eu imagino seria estudar sobre macieiras. Que tipo de solo seria bom para elas? Que tipo de adubo é o mais adequado? Que tipo de clima? Quanto de água é necessário por dia? Onde se conseguem mudas? É melhor plantar por muda ou por semente?

Só aí já te daria um bom trabalho. Essa seria sua lição de casa. Talvez essa lição de casa já fosse tão complicada e te deixasse tão confuso que você preferisse começar com algo mais simples, como feijão. Quase todos nós já plantamos um feijãozinho na escola. Você já plantou algum e chegou a colher as sementes e cozinhá-las para o almoço? Se você nunca fez isso, recomendo fazer! A sensação é maravilhosa!

Então, você resolveu começar com o feijão. Você decidiu que a macieira ainda não é para você, pois é uma árvore grande, demora, exige muitos cuidados, muito estudo etc. E olha que maçã se encontra de monte no supermercado! Parece uma coisa extremamente simples e banal. É importante distinguir: simples é uma coisa; fácil é outra!

Ou seja: na verdade, o que parecia ser lição de casa não era lição de casa, era trabalho para quem já tivesse mais experiência. Que programador iniciante nunca sonhou em trabalhar num grande sistema cheio de funcionalidades divertidas, como um jogo super avançado? Que programador iniciante algum dia já deu conta de fazer isso?

Para quem é da nossa área, a lição de casa geralmente não é um sistemão complexo e super divertido: nossa lição de casa é aquele programinha besta que o professor passou para você fazer, é aquela ordenaçãozinha de vetores, é aquela classezinha simples, é aquele diagraminha de classes simplificadão... São coisas que a gente dá conta de fazer e que vão construindo nosso conhecimento aos poucos. Quando é possível dar um salto mais longo, a gente faz isso, e é legal! Quando não é possível, a gente dá aqueles passinhos pequenos, às vezes desanimadores, às vezes despercebidos, que um dia se juntam com outros e se transformam num salto gigantesco, impossível de ser dado de uma vez só.

"Plantar feijão??? Tá louco, compra no supermercado!", talvez diga muita gente. Para o feijão estar bonitinho e ensacadinho no supermercado, alguém teve que trabalhar muito. "Alguéns", na verdade: um plantou, o outro regou, o outro colheu, o outro ensacou, o outro carregou, o outro colocou na gôndola... Todas essas coisas são pequenos passos para se atingir um resultado aparentemente tão simples quanto ter um feijão à disposição para ser comprado. É a partir de cada passo desse que vamos evoluindo. Tenha a certeza de que pessoas de sucesso fizeram suas lições de casa. Ninguém faz um negócio gigante da noite para o dia, tendo "sorte". Não existe sorte. Existe construção do seu destino.

É verdade que nem todas as pessoas de sucesso fizeram literalmente suas lições de casa. Muitas abandonaram a escola ou a faculdade. Isso é porque elas não viam valor nesses meios e preferiram tentar outros caminhos. É uma saída arriscada, eu diria; coisa para quem tem estômago suficiente para assumir as consequências. Porém, a lição de casa foi feita do mesmo jeito. Só que foram outras lições, fora da escola ou da faculdade. Um grande vendedor não começou vendendo grandes produtos para grandes clientes. Ele começou vendendo coisas simples na lojinha do bairro, clipes na papelaria, chaveiros na rua, pão na padaria etc. Ele teve que fazer a lição de casa assim como todo mundo, ele apenas escolheu quais seriam suas lições, e assumiu as consequências disso.

"E eu, o que eu tenho que fazer?". Você tem que encontrar essa resposta em você mesmo. Existem diversos caminhos, um deles é a faculdade, outro é o mercado de trabalho, outro é o autodidatismo... Cada um tem vantagens e desvantagens, e é possível seguir mais de um. Mas uma coisa eu te garanto: em qualquer caminho que você seguir, mais autônomo ou menos autônomo, mais perto de casa ou mais longe de casa, mais conservador ou mais arrojado, você vai ter que fazer a lição de casa.


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Padrão, sim; padrão, não.

Agora, muita microempresa não é mais microempresa, é tudo estartape.
Agora, muita foto de rosto não é mais foto de rosto, é tudo desenhinho bonitinho de rosto padronizado.
Agora, muito logotipo não é mais autoral, é tudo logotipo bonitinho padronizado.
Agora, muita gente dá feedback de tudo.
Agora, muita empresa põe no site um slogan bonito de missão social na página inicial.
Agora, muita empresa não tem mais site, tem fanpage.

Não que essas coisas estejam erradas. Se eu dissesse isso, seria até hipocrisia, já que:

Eu também digo palavras em inglês
Eu também já fiz desenhinho padronizado em site e usei como foto
Eu também aprecio feedback
Eu acho que é importante, sim, as empresas terem missões
Eu tive Facebook

O que eu questiono, na verdade, é o seguinte: essas coisas todas estão assim porque as pessoas realmente gostam e querem que estejam assim, ou as coisas estão assim só porque virou o padrão e agora todo mundo sente que tem que seguir, querendo ou não?

As pessoas realmente estão apreciando mais o tal do feedback ou elas estão simplesmente se sentindo obrigadas a falar sobre isso?

As pessoas que põem fotos de rosto padronizadas em seus perfis realmente se sentem bem fazendo isso ou elas vêem que muita gente faz e só por isso fazem também?

As empresas que dedicam tempo a manterem suas fanpages no Facebook fazem isso porque realmente mediram resultados e concluíram que ajuda nas vendas ou simplesmente começaram a fazer porque todo mundo estava fazendo ou porque o Gartner falou que tinha que fazer?

São perguntas difíceis de responder... Não há uma resposta única que sirva para todos os casos. Nem existe uma resposta pronta. Cada um precisa refletir e chegar à sua própria leitura.

Pessoalmente, no meu caso, a língua é o fator que mais me chama a atenção. Por exemplo, quando eu leio a palavra "gamificação", sempre me vem primeiro a leitura "gâmi-ficação", porque foi assim que eu aprendi a ler na escola. É claro que muita gente, ao me ouvir falando "gâmi-ficação", vai me dizer: "A pronúncia correta é gueimificação".

A questão que mais me interessa não é essa palavra, nem qual é sua leitura correta, nem qual é sua escrita correta. Só estou pegando esse exemplo para levantar a seguinte reflexão:
  • Quem determinou que essa é a pronúncia correta?
  • Com que base? 
  • Quais são os ganhos?
  • Quais são as perdas?

Bom, a palavra veio do inglês, gamification. Quando alguém acredita que "gamificação" seja a melhor tradução para o português, essa pessoa está automaticamente valorizando mais a proximidade com a palavra original em inglês do que as regras fonéticas de sua própria língua.

Seria como escrever um código inválido na linguagem do seu sistema só para quebrar o galho de um problema imediato e depois sair tentando convencer todos os compiladores do mundo a compilar aquilo sem reclamar. Você concorda com essa comparação?

Fazer isso seria uma atitude aceitável? Não sei, mas, provavelmente, não daria em nada... Os desenvolvedores de compiladores dariam risada de quem pedisse isso.

E se, em vez disso, eles concordassem em alterar seus compiladores? Aí, pronto! Teríamos uma solução mais simples para nosso problema imediato daquele dia.

(Mais simples?)